O movimento recente observado entre crianças e jovens que demonstram desprezo pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) expõe uma realidade complexa, em que a ideia do que é ser trabalhador ou trabalhadora virou sinônimo de exploração, baixos salários, má qualidade de vida e convivência em ambientes tóxicos e precarizados.
Essa é a percepção de especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato sobre o fenômeno que cresce a cada dia e, até mesmo, transformou a sigla CLT em ofensa usada como xingamento. Na narrativa absorvida pela juventude, o contraponto ao trabalho formal está nas soluções milagrosas do chamado empreendedorismo digital.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Cássio, membro do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que esse discurso atende a uma agenda econômica e empresarial neoliberal, mas ressalta que as más condições do trabalho formal são um fator relevante no reforço do cenário.
“Nos últimos anos, temos assistido a uma precarização substantiva e imensa do trabalho formal com carteira assinada. Isso não é uma coisa menor. Vemos a reforma trabalhista do Michel Temer (MDB), pessoas que trabalham com registro perdendo direitos e mal remuneradas. As pessoas têm esse senso. Se vou trabalhar precarizado tendo patrão, então vou trabalhar para mim mesmo.”
Ele observa que o uso do termo CLT como ofensa é muito influenciado pela capilaridade do discurso empreendedor; pela noção de que o trabalho formal é ultrapassado e a plataformização é uma resposta a isso; e pelo verniz de sucesso e liberdade que o capitalismo contemporâneo dá a novas formas de explorar o trabalho precário e informal.
No entanto, Cássio pondera: “Não é só o currículo escolar ou os influenciadores da internet que vão incutir na cabeça das novas gerações as ideias individualistas do empreendedorismo. Temos aí condições de vida objetivas, que também contribuem para que as pessoas acolham essas ideias e determinadas visões disponíveis na internet”.
Realidade em índices
O peso da precarização do trabalho formal na assimilação do discurso de desprezo pela CLT já se expressa em dados. Uma pesquisa realizada pelo Ministério do Trabalho e divulgada na última terça-feira (29) apontou os principais motivos que levam jovens de 14 a 24 anos a pedir desligamento voluntário de um emprego formal.
Nas faixas etárias de 14 a 17 anos, os baixos salários foram citados por 29% dos entrevistados e entrevistadas. Entre quem tem de 18 a 24 anos, o índice de menções ao tema chegou a 36%. A falta de flexibilidade na jornada foi motivação para que 20% das pessoas com idades entre 18 e 24 anos deixassem o emprego formal.
Além disso, o adoecimento mental provocado pelo estresse do trabalho afetou 21% dos jovens de 14 a 17 anos e 26% dos jovens de 18 a 24 anos. Na lista de respostas entraram também as dificuldades de mobilidade entre casa e trabalho, a falta de reconhecimento, questões éticas com a forma de trabalho das empresas e problemas com a chefia imediata.
A médica e especialista em saúde do trabalhador e da trabalhadora Maria Maeno também conversou com o Brasil de Fato sobre o tema. Pesquisadora da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), ela observa uma campanha contra a CLT que não é nova, mas tomou novos contornos no meio virtual.
Segundo Maeno, a Consolidação das Leis do Trabalho sempre foi objeto de crítica, inclusive, por parte de quem busca ampliar os direitos proporcionados por ela. Por outro lado, há também um esforço “diuturno” para demonizar a legislação que não visa o bem-estar coletivo, a justiça social, a distribuição de renda, a sustentabilidade e os direitos de trabalhadores e trabalhadoras.
“Pelo contrário, a campanha de demonização da CLT tinha e tem como um dos objetivos ganhar as novas gerações para uma visão de mundo em que o suposto mérito de cada um é o que faz com que as pessoas sejam bem-sucedidas. Essa apropriação da subjetividade foi potencializada pelo meio virtual, e aí uma parcela das crianças e adolescentes tende a ver seus pais e mães como pessoas ultrapassadas, que sempre trabalharam muito e tem tão pouco em termos materiais.”
Maria Maeno pontua ainda que a maior parte da população trabalha cada vez mais, mas vive em situação de instabilidade social e econômica e tem pouco tempo para lazer e ócio com as famílias. Essa realidade é um “ingrediente a mais” no convencimento da população jovem.
“A saída oferecida e divulgada pelo capital é que se busque explorar e viver de seus supostos talentos, particularmente no mundo virtual, com redes e monetizações. É um movimento que, a grosso modo, pode ser comparado com os meninos que sonhavam, em outra época, em ser estrelas do futebol e meninas que queriam ser estrelas de TV. Obviamente, como sabemos, a ínfima minoria era bem-sucedida.”
A propagação do discurso
Estudos já demonstram quais são os principais mecanismos e fatores de propagação desse discurso. A pesquisa “Mídias Sociais como Plataforma de Trabalho Digital”, publicada no ano passado, identifica uma narrativa anti-direitos trabalhistas frequente no marketing digital. Quem está nas redes sociais sofre um bombardeio de propaganda contra o trabalho formal, retratado como restritivo e indesejável.
Nesse discurso, propagado por influenciadores e influenciadoras de diversos campos, o trabalho autônomo é alardeado como uma alternativa superior e as proteções trabalhistas formais são vistas como desnecessárias.
A historiadora, produtora de conteúdo e colunista do Brasil de Fato, Laura Sabino, aponta que as novas gerações cresceram em um período em que os direitos já estavam consolidados. A percepção de que eles são fruto da luta popular desapareceu.
“Infelizmente, aprendemos a enxergar a CLT e os direitos trabalhistas como projetos criados por políticos e poderosos — e não como conquistas históricas da classe trabalhadora. Não aprendemos que direitos como férias, 13º salário, FGTS e aposentadoria são frutos de muita luta contra a exploração capitalista.”
Segundo ela, a internet se tornou um grande vetor da ideologia meritocrática e individualista, que já era muito comum nas mídias tradicionais. O reforço digital deu a essa narrativa uma dimensão ainda mais gigantesca e os algoritmos favorecem conteúdos que glorificam o consumo e o sucesso fácil.
“Esse discurso camufla o fato de que os verdadeiros empresários, herdeiros e membros da elite econômica lucram com a ausência de direitos trabalhistas: o patrão paga menos, explora mais e maximiza seus lucros. Além disso, quando o trabalhador acredita que seu fracasso é culpa exclusivamente sua — e não do sistema —, ele não se organiza contra a exploração.”
Caminhos para a solução
O diagnóstico de que a precarização do trabalho e o discurso neoliberal propagado pela internet estão diretamente ligados ao desprezo das novas gerações pela CLT aponta também alguns caminhos para mudança desse cenário. Eles envolvem o papel da educação formal e a necessidade de organização coletiva contra a exploração.
Fernando Cassio enfatiza que a escola não deve ser um espaço para alimentar discursos que desvalorizam a proteção trabalhista e idealizam formas de trabalho precárias. “Já temos coaches empresariais e uma vida precarizada o suficiente para construir uma suscetibilidade a isso”, alerta.
Ele defende que é preciso disputar a construção do currículo escolar, que, nas palavras do educador, está sendo “devassado” por esse discurso. Segundo Cassio, esse caminho é essencial para impedir que a lógica individualista tome conta do que é ensinado em sala de aula.
“A escola tem outro papel e isso não quer dizer que ela vai ficar parada no tempo. Mas a escola tem o papel de formar as pessoas e distribuir o conhecimento que foi acumulado na história da humanidade. Inclusive, esse conhecimento é fundamental para que as pessoas tenham a capacidade de entender a própria situação de precarização e de pensar sobre esse fato.”
O pesquisador cita que o espaço escolar é fundamental para que a população tenha entendimento sobre conceitos como proteção e garantias sociais e direitos coletivos. Ainda de acordo com ele, esse ambiente também tem obrigação de estimular o pensamento crítico em relação ao discurso individualista.
Maria Maeno também observa a importância da valorização da coletividade para combater as narrativas negativas sobre o trabalho formal. “O enfraquecimento das organizações partidárias, associativas, de movimentos sociais contribui para que se busquem saídas individuais”, diz ela.
Na conversa com o BdF, a pesquisadora afirma que, atualmente, grande parte da massa trabalhadora vivencia uma rotina que leva ao desgaste e ao adoecimento. Na lista de exemplos, ela cita as trabalhadoras domésticas, que mais de dez anos depois da lei que regulamenta a profissão, ainda sofrem com a informalidade, a negação de direitos e as relações de trabalho opressoras.
Maeno lembra ainda das condições precárias às quais são submetidos os entregadores por aplicativos, uma das profissões símbolo do trabalho plataformizado. Nela, um número cada vez maior de trabalhadores, normalmente jovens, estão expostos à violência no trânsito e à violência social e atuam sem nenhum direito trabalhista garantido.
Mas a especialista cita também categorias que tradicionalmente contavam com maior proteção. Bancários e bancárias, por exemplo, hoje convivem com ampla terceirização das atividades e sistemas de metas inatingíveis, que levam ao adoecimento físico e mental. Servidores e servidoras vivem processos de precarização, privatização e crescente desvalorização de suas funções.
“Os jovens têm que voltar a ter esperança e a sonhar com um mundo em que tenhamos tempo para criar, viver com a família e os amigos, viajar, conhecer a diversidade histórica e cultural dos povos. Isso requer organização para se perceber que, por trás do mundo atual, estão poderosos interesses econômicos do capital. É contra esses alicerces que temos que empreender nossas energias.”
Nas palavras da professora, é preciso haver um esforço conjunto para que as correntes contra-hegemônicas sejam fortalecidas. “Temos que lutar não só pela nossa sobrevivência, mas também para que tenhamos uma vida plena que nos satisfaça e que nos permita sonhar. Eu não vejo outra saída.”
Fonte ==> Brasil de Fato