Pode transar, mas não pode se apaixonar – 05/06/2025 – Tati Bernardi

Pode transar, mas não pode se apaixonar - 05/06/2025 - Tati Bernardi

Começo a fazer pilates perto de casa e fico encantada por uma aluna bem jovem chamada Laura. Ela pergunta se estou precisando contratar uma pesquisadora para algum roteiro e me conta que tem mestrado em “história, política e sociedade”.

Laura tem tatuagens geométricas bem bonitas e originais e trocamos número de telefone para que ela possa me mandar o contato do seu tatuador. A partir daí, sempre que recebemos vídeos sobre alimentos industrializados mandamos uma para outra. Ela com medo de um câncer no futuro, eu com medo de já ter a idade do futuro de Laura.

Laura vem a uma festa em minha casa e traz seu companheiro. Eu chamo de marido e eles arregalam os olhos escandalizados. Não pode mais falar marido, eu tinha esquecido. O marido é mais velho do que Laura, mas bem mais novo do que eu. E ele gosta de mim. E gosta bastante. Puxa papo a noite toda, mexe de leve no meu cabelo e Laura sorri tomando certa distância e incentivando o flerte. Ela e seu top minúsculo com paletó gigante insistem em uma estabilidade que não me convence e eu fico curiosíssima tentando entender como funciona a mente dessa geração.

O marido-companheiro de Laura me olha de um jeito tão intenso que começo, nervosa, a morder e lamber compulsivamente os lábios, chego a fazer uma ferida na boca.

No dia seguinte ele puxa papo e mostra que além de tudo é um cara culto e afiadíssimo nas ironias. Juntos vamos ao teatro, ao cinema, brincamos com crianças, ficamos deitados no chão da sala tentando ver quem ganha no campeonato de falar besteira e até viajamos um final de semana. Um dia eu pergunto como funciona a relação aberta entre eles: “pode transar, mas não pode se apaixonar”.

E o que estamos fazendo então há semanas, considerando que não conseguimos desgrudar um do outro? Que conta é essa? Que Excel geração YZ é esse? Não dava só pra gente assumir que está cagando a vida um do outro e que em breve, machucados e mais cínicos, partiremos para novas desgraças amorosas? A vida costuma ser assim há mil anos.

Eu pergunto se Laura está com raiva e ele diz que não. Eu pergunto se ele sente raiva de ela não sentir raiva e ele responde que não. E o que vocês sentem, então, considerando que até a benevolência mais suprema vem sempre coladinha com a própria sombra?

Então eu começo a ter raiva por todos eles. Raiva porque tesão me dá raiva, raiva porque gostar me dá raiva, porque superioridade geracional me dá raiva, porque delimitar o que o outro pode fazer “trepe, mas não ame” e chamar isso de uma geração mais livre me dá raiva. Raiva de quem acredita que é possível se proteger e sair ileso do amor.

Raiva porque estou cheia de trabalho, mas fissurada em ver pela centésima vez o vídeo do companheiro de Laura surfando todo desengonçando e lindíssimo em Ubatuba e raiva porque eu acho que sem raiva a gente não chupa nem uma bala.

Quem é que trepa, come um bife, atravessa os dias, ama, cria um filho…sem raiva? Por Deus, crianças, parem com essa putaria higiênica, parem com essa suruba entre a generosidade, o equilíbrio e o respeito!

Onde está a ferocidade, a exuberância e a intensidade das relações? Acho que estão todas na internet, quando as pessoas, sem conseguir colocar sua loucura e sua cólera na paixão, no sexo, no arrebatamento, colocam na ponta dos seus dedos, apontando, julgando, elegendo quem será o cancelado “sujo” da vez. Porque tudo de pior só pode estar fora de suas casas.



Fonte ==> Folha SP

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