No último mês de abril, sementes de grão-de-bico e plantas de batata-doce produzidas no Brasil partiram em um voo suborbital da empresa privada Blue Origin, que representou um importante passo para a agricultura espacial brasileira.
Mas o que exatamente é a agricultura espacial? E por que pesquisadores brasileiros estão enviando vegetais para fora da atmosfera terrestre?
A história começa em 2020, quando a Nasa e o Departamento de Estado dos EUA, com a participação de empresas de voo espacial comercial e parceiros internacionais, estabeleceram o Acordo Artemis, que tem o objetivo de levar seres humanos de volta à Lua, explorar o espaço profundo e possivelmente pisar pela primeira vez em Marte.
Diferentemente do Programa Apollo, executado pela Nasa entre 1961 e 1972, a ideia das novas missões não é apenas alcançar o satélite natural da Terra temporariamente, mas estabelecer bases permanentes com presença humana, dando início a uma economia sustentável na Lua e, em longo prazo, no planeta vermelho, em um cenário que remete ao filme “Perdido em Marte” (2015).
Inicialmente o acordo envolvia oito países, mas atualmente conta com 55 nações signatárias, incluindo o Brasil, que aderiu ao programa em 2021. No ano seguinte, foram publicados os objetivos do Artemis, alguns deles relacionados ao cultivo de plantas no espaço, uma vez que o custo do envio de comida produzida na Terra inviabilizaria a manutenção da alimentação dos astronautas.
Países signatários do Acordo Artemis
- Alemanha
- Angola
- Arábia Saudita
- Argentina
- Armênia
- Austrália
- Áustria
- Bahrein
- Bangladesh
- Bélgica
- Brasil
- Bulgária
- Canadá
- Chile
- Chipre
- Colômbia
- Coreia do Sul
- Dinamarca
- Emirados Árabes Unidos
- Equador
- Eslováquia
- Eslovênia
- Espanha
- Estônia
- Estados Unidos
- Finlândia
- França
- Grécia
- Índia
- Islândia
- Israel
- Itália
- Japão
- Liechtenstein
- Lituânia
- Luxemburgo
- México
- Nigéria
- Noruega
- Nova Zelândia
- Panamá
- Países Baixos
- Peru
- Polônia
- Reino Unido
- República Dominicana
- República Tcheca
- Romênia
- Ruanda
- Singapura
- Suécia
- Suíça
- Tailândia
- Ucrânia
- Uruguai
“Como o Brasil é internacionalmente reconhecido pela pesquisa agrícola, vislumbrou-se a oportunidade de a Embrapa contribuir, pensando também no retorno à sociedade brasileira de todas as tecnologias que serão desenvolvidas no decorrer dos trabalhos”, explica Alessandra Fávero, pesquisadora da Embrapa Sudeste e coordenadora da rede Spacing Farm Brasil.
A ideia foi levada à gestão da Embrapa Pecuária Sudeste, que apoiou o avanço de articulações sobre a temática com pesquisadores de outras unidades da instituição, como de Agroenergia, Instrumentação, Hortaliças, Agroindústria Tropical e Soja, além da Agência Espacial Brasileira (AEB) e diversas universidades e instituições de pesquisa.
Hoje, a Rede Space Farming Brasil conta com 56 pesquisadores de 22 instituições, incluindo quatro internacionais, com diferentes expertises.
Instituições que integram a Rede Space Farming Brasil
- Agência Espacial Brasileira (AEB)
- Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP)
- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
- Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP)
- Instituto Agronômico (IAC)
- Instituto de Estudos Avançados (IEAv)
- Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP)
- Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
- Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP)
- Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA)
- Florida Tech University (FIT)
- Parque de Inovação Tecnológica de São José dos Campos (PITSJC)
- Universidade da Flórida (UFl)
- Universidade de Newcastle (NCL)
- Universidade Federal do ABC (UFABC)
- Universidade Federal de Lavras (Ufla)
- Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
- Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
- Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
- Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
- Universidade Federal de Viçosa (UFV)
- Winston Salem State University (WSSU)
No último dia 14 de abril, a rede estabeleceu um marco inédito ao enviar o grão-de-bico e a batata doce ao espaço, na missão NS-31 da Blue Origin – a mesma que levou a cantora Katy Perry para além da atmosfera terrestre. A empresa aeroespacial comercial pertence ao bilionário americano Jeff Bezos, também fundador e CEO da Amazon.
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Durante cerca de cinco minutos, os alimentos ficaram expostos a um ambiente de microgravidade, o que pode fornecer parâmetros para o desenvolvimento de um cultivo espacial.
No momento, as amostras encontram-se nos Estados Unidos, onde as sementes e plantas estão sendo documentadas para serem enviadas de volta ao Brasil. Assim que retornarem, passarão por análise genética, para se entender os efeitos provocados pela exposição ao voo suborbital.
Espécies foram escolhidas por valor nutritivo e adaptabilidade
A escolha das espécies do grão-de-bico e da batata-doce para os primeiros experimentos brasileiros não foi aleatória. Além de a leguminosa ser rica em proteína e o tubérculo, em carboidrato de baixo índice glicêmico, ambas são versáteis na preparação de alimentos, geram pouco resíduo e têm rápido crescimento e fácil manejo.
O grão-de-bico permite a preparação de pratos que vão de homus a hambúrguer e é rico em triptofano, precursor da serotonina, o que é interessante em situações de estresse. A variedade utilizada nos estudos é a BRS Aleppo, uma cultivar desenvolvida pela própria Embrapa.
No caso da batata-doce, foram utilizadas as cultivares Beauregard, que tem dez veses mais betacaroteno do que as variedades mais comuns no país, e a Covington, desenvolvida para ter crescimento acelerado, adaptabilidade, alto valor nutricional e manejo simples.
A leguminosa é rica em antioxidantes, uma vantagem para a saúde humana e para a própria planta por torná-la mais tolerante à radiação ionizante presente no espaço. Além disso, suas folhas, ricas em fibra e proteína, também podem ser consumidas, reduzindo a produção de resíduos.
Primeira fase das pesquisas é a simulação na Terra
A primeira fase das pesquisas brasileiras é a simulação na Terra, que envolve a preparação do material, tanto das espécies vegetais quando das condições de cultivo em ambiente protegido, sistemas de iluminação e crescimento acelerado das plantas.
Concluída essa etapa, a ideia é passar para o teste em condições de órbita terrestre para adaptação do cultivo até o momento em que uma missão volte à Lua e, mais para frente, chegue a Marte, estabeleça as bases permanentes e possa dar início às plantações nos corpos celestes.
“A gente vai fazendo os ajustes até lá, o que deve ocorrer apenas na próxima geração”, diz Alessandra. “Sempre falamos que o Programa Artemis ainda está na creche. Sabemos que é um projeto de longuíssimo prazo, mas precisamos começar em algum momento, como foi com o desenvolvimento de qualquer grande tecnologia.”
Desafios da agricultura espacial incluem radiação ionizante e ausência de solo, gravidade e atmosfera
A coordenadora da rede Space Farming Brasil explica que em médio prazo há outras espécies candidatas a entrarem nos estudos, mas o foco neste momento é nas plantas-modelo. Outros países que colaboram com o projeto em agricultura espacial trabalham com variedades que incluem batata inglesa, alface, tomate e outros alimentos.
Mais para frente, as pesquisas devem envolver ainda vegetais não necessariamente voltados à alimentação, mas para a produção de fibras, bioplástico, biomassa, fármacos e outros derivados essenciais para a manutenção da vida humana fora da Terra.
“A gente sempre fala que a condição mais extrema para se cultivar é fora da Terra”, explica Alessandra. Os desafios incluem a microgravidade, a radiação ionizante cósmica e a ausência de solo e de atmosfera.
Testes realizados pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, utilizando equipamentos especiais e CubeSats (satélites em miniatura) mostram que, em diferentes condições de gravidade, as plantas entram em estresse significativo, comprometendo a produção. Com a simulação desses ambientes na Terra, é possível prever formas de viabilizar a agricultura em futuras estações espaciais.
A radiação ionizante cósmica exige que os cultivos estejam protegidos, da mesma forma que os astronautas, por invólucros com materiais capazes de absorver as ondas.
“O solo da Lua, chamado de regolito, é completamente diferente do nosso, rico em alumínio e ferro e extremamente pobre em elementos que são importantes para a nutrição da planta”, explica Alessandra. “Então, a princípio, podemos utilizar técnicas como aeroponia e hidroponia, que não dependem de solo, até conseguir adaptar o cultivo utilizando as condições de superfície dos diferentes corpos celestes.”
Pesquisas no Brasil usam compostos que simulam solo da Lua e de Marte
Há pesquisas em andamento no Brasil que trabalham com desenvolvimento vegetal em compostos que simulam o solo lunar e marciano, conta a pesquisadora.
Outra condição necessária para o estabelecimento de bases na Lua e em Marte é a criação de atmosferas artificiais, com composição semelhante à da Terra, como já existe na Estação Espacial Internacional.
“Para além do crescimento vegetal em ambiente fechado, é preciso que o cultivo seja completamente autossustentável. Então é preciso que o plantio produza novas sementes, a água seja tratada, os resíduos voltem para o sistema como fertilizantes e a troca de gás carbônico por oxigênio ocorra sem perdas, por exemplo.”
Agricultura espacial também visa benefícios para produção na Terra
Além de permitir a criação de uma agricultura fora da Terra, as pesquisas devem favorecer a agricultura na Terra, especialmente considerando as incertezas quanto ao futuro do clima.
Os chamados spinoffs, ou seja, tecnologias utilizadas em nosso cotidiano desenvolvidas a partir de explorações espaciais, não são novidade. Câmera de celular, sistema de navegação por satélite (GPS), aspirador de pó portátil, lentes anti-risco, filtro de ar, fone de ouvido sem fio, próteses artificiais e até materiais usados em tênis de corrida e travesseiros derivam de estudos conduzidos pela Nasa para missões espaciais.
Na agricultura, fazendas verticais, que reutilizam água, minimizam o consumo de energia e dispensam o uso de solo, também são resultado de pesquisas da agência espacial norte-americana.
As pesquisas de agricultura espacial conduzidas no Brasil, nesse contexto, devem resultar também na criação de novas variedades de grão-de-bico, batata-doce e outras espécies.
“Serão cultivares mais eficientes no uso de água, mais produtivas, mais adaptáveis e com outras características superiores que acabarão sendo lançadas no mercado e que poderão ser utilizadas por produtores brasileiros”, diz Alessandra.
Melhoramento preventivo pode selecionar plantas tolerantes a condições mais severas
A expectativa, diz a pesquisadora, é que, além de novas variedades, sejam desenvolvidas tecnologias que possam beneficiar a agricultura na Terra em meio aos desafios das mudanças climáticas.
Um sistema autossustentável pode utilizar as técnicas criadas pela agricultura espacial para garantir a segurança alimentar de populações de regiões em processo de desertificação, por exemplo.
Outra linha de pesquisa envolve o chamado melhoramento preventivo. “Nós podemos selecionar agora plantas mais tolerantes às temperaturas projetadas para daqui a 10 ou 20 anos e, quando isso acontecer, já teremos material pronto para disponibilizar.”
Fonte ==> Gazeta