18 de abril de 2025

Pós-verdade, desconfiança e crise de autoridade – 15/02/2025 – Opinião

Na ilustração emerge, em primeiríssimo plano, uma cabeça em preto e branco. Ceifada na altura das sobrancelhas fica a mostra o interior do crânio, onde flutua um enorme ponto de interrogação de cor laranja. As pupilas também são de cor laranja.

A palavra “pós-verdade” apareceu pela primeira vez em 1992 no artigo “A Government of Lies” (“Um Governo de Mentiras”), publicado na revista The Nation e de autoria do dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich (1942-1996).

No texto, o autor revelava o desencanto dos americanos com os abusos de poder de seus governantes a partir do caso Watergate durante o governo Nixon. Naquele contexto, Tesich desenhava um cenário em que a sociedade perdia a fé nas instituições democráticas. Para ele, as implicações eram aterrorizantes: “Começamos a nos afastar da verdade”; “Decidimos livremente que queremos viver num mundo pós-verdade”.

Na sua visão, essa postura poderia pavimentar o caminho para o totalitarismo, na medida em que esse sentimento coletivo de descrença tenderia a naturalizar discursos populistas: “Até agora, todos os ditadores tiveram de trabalhar arduamente para suprimir a verdade. Nós, pelas nossas ações, estamos dizendo que isso não é mais necessário”.

Só mais recentemente, em 2016, o termo se tornou mundialmente conhecido por ter sido eleito a “palavra do ano” pelo dicionário Oxford, no contexto da eleição presidencial nos Estados Unidos, marcada pela desinformação e por apelos emocionais.

O fato é que o fenômeno da pós-verdade se transforma em ameaça real à democracia na medida em que degrada as instâncias de diálogo coletivo, sem as quais ela não existe. Nesse contexto, a verdade objetiva se torna menos importante do que apelos emocionais na formação da opinião pública. Temos testemunhado, nas últimas décadas, um crescente desencanto com os ideais da democracia liberal.

Motivos para esse mal-estar não faltam: escândalos de corrupção e burocracias ineficientes minam a credibilidade dos governos.

Recentemente, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia de 2008, escreveu a sua última coluna no New York Times (que mantinha há 25 anos), intitulada “Finding Hope in an Age of Resentment” (“Encontrando Esperança em uma Era de Ressentimento”). A tese do autor é a de que, ao longo deste quarto de século, o otimismo foi substituído por ódio e ressentimento, tendo como causa principal o fato de que a confiança nas elites ruiu.

Para além das insatisfações conjunturais, há sinais de que essa crise é estrutural, de natureza ampla. A autoridade tem sido contestada em três instâncias fundamentais para o desenvolvimento da democracia liberal: o governo, a imprensa e a ciência.

No que diz respeito aos governos, o descrédito é crescente, independe do governo de plantão. A recente crise de comunicação do governo federal envolvendo o Pix revela uma desconfiança que, certamente, vai além das vulnerabilidades do Executivo atual.

Em relação à impressa, o descrédito também se mostra crescente. Em pesquisa recente do Instituto Gallup, realizada entre eleitores norte-americanos, apenas 54% dos democratas e 12% dos republicanos afirmaram confiar nos órgãos de imprensa. Essa situação revela a desconfiança da sociedade em relação à capacidade da imprensa de transmitir a verdade dos fatos. Diante da proliferação de fake news, a noção da verdade objetiva dos fatos, condição fundamental para uma saudável convivência social, parece dissolver-se na sociedade.

Não tem sido diferente em relação à ciência, com paradigmas científicos sendo questionados nas redes sociais.

E essa situação só tende a piorar com a chegada da inteligência artificial. Há pouco tempo, o jornalista Herton Escobar publicou um instigante artigo no Jornal da USP intitulado “O começo do fim da realidade”, sobre os riscos dessa tecnologia. Para ele, “o ponto crítico é que a linha que separa a realidade da ficção no mundo digital está sendo completamente borrada pela IA”. E acrescenta: “Tão perigoso quanto acreditar em mentiras é deixar de acreditar na verdade”.

Esse parece ser o maior desafio de sociedades democráticas: recuperar a fé em si mesmas e nos seus mecanismos legítimos de constituição das autoridades. Para isso, governos, imprensa e ciência terão um papel fundamental.

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Fonte ==> Folha SP

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