Quando “Cinzas no Paraíso” estreou, em 1978, centenas de queixos caíram na sala de gala do Festival de Cannes. Eram críticos boquiabertos com o filme de Terrence Malick, o cineasta americano que dirigira apenas o pouco visto “Terra de Ninguém”.
Ficaram embasbacados pelo pior dos motivos: não sabiam explicar por que o filme deslumbrava. Um crítico sensato, Gilberto Perez, deu um bom conselho aos colegas: “Se não entendeu o filme, elogie a fotografia”. Assim foi feito e “Cinzas no Paraíso” ganhou a Palma de Ouro.
O conselho não era cínico. O visual de “Terra de Ninguém” é de fato fascinante –foi todo filmado na “hora mágica”, a da aurora e do crepúsculo, quando as paisagens são acariciadas pelo Sol ruborizado na linha do horizonte. Tanto que o filme veio a ganhar o Oscar de Fotografia.
Malick tornou-se o Graal de Hollywood. Choveram propostas polpudas para filmar o que quisesse, com liberdade total. E ele fez algo assombroso: sim salabim, sumiu. Ficou 20 anos sem filmar nem falar. Não se sabia nem em que país vivia.
Do nada, reapareceu. Alistou uma tropa de estrelas —George Clooney, John Travolta etc.— e fez “Além da Linha Vermelha”. Não explicou por que, em quase três horas de filme, Clooney aparece 90 segundos e Travolta quatro minutos.
Choveram elogios a “Linha Vermelha” —sobretudo à fotografia… O diretor seguiu carreira com filmes bons e outros nem tanto, mas que provocam comentários como “enigmático e ambiguamente simbólico” e “poético e esteticamente avassalador”. Por que será?
Algumas respostas estão em “The Magic Hours“, sua primeira biografia, de John Bleasdale. A grande virtude do livro é a desafetação. Parece pouco, mas há pencas de ensaios sobre ele com títulos como “Trágica Indiscernibilidade” e “Vocalizando o Sentido”. São escritos que analisam seus filmes com as lentes de Schiller, Deleuze e, veja só, Heidegger.
Pois “The Magic Hours” conta que Malick estudou a fundo a obra do reitor nazista. Mais: traduziu e escreveu uma copiosa introdução a “A Essência do Fundamento“. Mais ainda: apresentado por Hannah Arendt, antiga amante de Heidegger, discutiu filosofia com ele.
O livro também diz que Malick brigou com o pai —vide “A Árvore da Vida”, autobiográfico—, foi posto num colégio interno aos 12 anos e nunca mais voltou para casa. Usava uniforme com gravata, camisa social e calça com vinco. Ia à capela todos os dias e à missa no domingo.
Do internato pulou para Harvard para estudar filosofia. Nas horas de folga, representava Shakespeare e via filmes do indiano Satyajit Ray. Conseguiu uma das bolsas mais que prestigiadas, a Rhodes, e mudou-se para Oxford, na Inglaterra.
Antes, passou um ano na Sorbonne. Conheceu Hannah Arendt, que se interessou pela sua tese —”O conceito de mundo em Kierkegaard, Heidegger e Wittgenstein”— e o encaminhou à casa do autor de “Ser e Tempo”, na Floresta Negra. Malick tinha 21 anos. Segundo um colega, “era inacreditavelmente inteligente”.
Largou o curso de filosofia e deu um mau passo: foi jornalista. Começou por cima, como repórter da New Yorker. Mandado à Bolívia para cobrir o julgamento de Régis Debray, acusado de terrorismo, chegou a La Paz um dia após o assassinato de seu ídolo, Che Guevara. Anos depois, foi a Havana e jogou basquete com Fidel Castro. Também desistiu do jornalismo e, meio ao acaso, matriculou-se numa faculdade de cinema.
Seu estilo se firmou em “Cinzas no Paraíso”, cujo título original, “Days of Heaven”, alude ao Deuteronômio (11:12): “se obedecer a Deus, a humanidade será próspera pelo mesmo número de dias que o céu paira sobre terra”. Ou seja, o ponto de vista de Malick é o de Deus
Sua câmera perambula entre os personagens, paira acima deles, observa-os, escuta suas dúvidas e angústias nas horas mágicas de dias eternamente dourados. Às vezes, como em “A Árvore da Vida”, volta ao Big Bang, ao magma que deu origem ao Universo e à humanidade.
Libertos da tirania do enredo, os filmes têm muito de metafísico. Estranhamente, contudo, estão plantados na história: o morticínio indígena em “O Novo Mundo”; os escangalhados do sonho americano em “Badlands”; a Segunda Guerra Mundial em “Além da Linha Vermelha” e “Uma Vida Oculta”.
Muita gente os detesta. O que Pauline Kael disse de “Cinzas no Paraíso” vale para todos os filmes de Malick: “É uma árvore de Natal vazia: dá para pendurar nela várias metáforas idiotas”. É uma pilhéria tola. Melhor vê-los como cinzas de um paraíso que nunca existiu.
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Fonte ==> Folha SP