'Qual crime eu cometi? Crime de trabalhar? O crime de ser preto?', questiona repórter baleado e confundido com bandido


Em entrevista ao Fantástico, neste domingo, o estudante lembrou dos momentos de terror vividos “Qual crime eu cometi? Crime de trabalhar? O crime de ser preto? O crime de estar em cima de uma moto de madrugada? Eu não entendi o porque. Não entendi”. O desabafo foi feito pelo universitário Igor Melo, de 31 anos, durante uma entrevista ao Fantástico, exibida ontem. Baleado na garupa de uma moto ao ser confundido com um assaltante, ele e o piloto, Thiago Marques, de lembraram como foi o ataque.
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Na madrugada do dia 23 do mês passado, mais uma noite exaustiva de trabalho chegava ao fim. Igor saiu do espaço de samba Batuq, na Penha, na Zona Norte do Rio, quando pediu uma moto de aplicativo para chegar em casa mais rápido. Enquanto isso, Thiago, motociclista de aplicativo e morador de Magé, voltava da casa do pai, em Ramos, e aceitou a corrida para completar a meta de R$ 150 do dia. O destino era Turiaçu, onde Igor mora com a mulher e o filho.
— Eu olhei pelo retrovisor e vi um carro vindo daquela direção em alta velocidade. Eu abri passagem pra ele seguir viagem. Ele pareou do nosso lado e diminuiu a velocidade. Aí eu vi o momento em que ele botou o revólver pra fora, eu falei: “deve ser uma tentativa de assalto”. Quando eu ouvi o disparo, eu me joguei no chão. Me joguei no chão, foi onde eu e o Igor caímos — conta Thiago.
O motivo do PM reformado Carlos Alberto de Jesus ter atirado seria o fato de que sua esposa, Josilene da Silva Souza, teria sido assaltada naquela noite, por volta das 23h, e reconhecido o bandido naquela moto. O policial alegou que atirou após ver “um homem de camisa amarela fazer um movimento suspeito, girando o corpo para a esquerda e para a direita, como se estivesse se preparando para sacar uma arma”.
— Ele tentou atirar mais de uma vez. Quando saiu esse tiro, eu senti uma queimação aqui atrás, o motoqueiro, ele ficou desesperado em si. Ficou desesperado e a moto caiu. A gente percebeu que o farol do freio ligou e da marcha ré também. A gente falou: “cara, ele vem atrás da gente. Vamos correr — diz Igor.
Para fugir dos disparos, os dois pularam do viaduto e correram em direção a uma casa abandonada. Neste momento, Igor, que havia sido alvejado, pediu ajuda para Thiago e implorou para que ele não o abandonasse. Ali, eles ficaram desconfiados um do outro, perguntando se alguém tinha feito algo contra o PM.
— Foi ele que me ajudou muito. Ele foi o primeiro a tentar se jogar do viaduto, eu me joguei junto com ele. E onde ele ia, eu ia atrás. Onde ele ia, eu ia atrás e eu lembro que no momento… desculpa. Falei: ô Tiago, não me abandona. Não me abandona, não, porque senão eu vou morrer. Não me abandona. Por favor, não me deixa aqui. E ele falou: “não, cara, eu não vou te abandonar”. Eu vou ficar contigo até o final. E ficou também aquele clima de desconfiança. “O que tu fez pra esse cara? Po, Tiago, eu não fiz nada. Mas e tu, o que vc fez? Eu também não fiz nada” — recorda.
Quando olhou para o próprio corpo, o comunicador viu bastante sangue e começou a se sentir fraco. Nessa hora, ele explica que pensou que iria morrer:
— Quando eu olhei para o meu corpo, muito líquido. Muito suor. A boca seca. Já estava perdendo os sentidos, ficando fraco. Eu pensei: “acho que agora eu vou morrer”.
Logo depois, Igor aproveitou os sete por cento de bateria que ainda tinha e ligou para a casa de samba onde trabalha. Dois amigos chegaram rápido e o levaram para o Hospital Getúlio Vargas. Thiago viu alguns carros de polícia na rua e foi até eles buscar socorro, mas, quando chegou lá, reconheceu o autor dos disparos junto aos agentes. Em seguida, ele foi levado para a delegacia e ficou preso por dois dias acusado de roubo.
— Foi horrível, um dos piores dias da minha vida. Eu sou pai de duas crianças, trabalhador. Trabalho desde os meus treze anos de idade. E eu sou isso aí. Sou trabalhador, sou sobrevivente, acima de tudo. A gente quer que o cara que causou isso tudo pague pelo que ele fez. Porque eu paguei por algo que ele fez. Eu fiquei preso — destaca
No hospital, o universitário ficou sob custódia da polícia sem sequer poder ver a família. O choque foi devastador. Após a liberação da entrada de seus familiares na unidade de saúde, ele despertava repetidamente aos berros, clamando por sua inocência. “Eu sou inocente, eu sou inocente”, gritava desesperadamente.
— Foi aí que a minha cabeça começou a ficar totalmente bagunçada. Qual crime eu cometi? Crime de trabalhar? O crime de ser preto? O crime de estar em cima de uma moto de madrugada? Eu não entendi o porque. Não entendi — questionou.
Em um primeiro depoimento, Josilene apontou que perdeu o celular em um assalto, feito por um homem armado, de camisa amarela, na garupa de uma moto. Ela reconheceu esse homem como sendo Igor. Josilene explica que, ao lado de Carlos Alberto, encontrou os assaltantes e o comunicador teria reagido à voz de prisão, sacado a arma, porém o PM teria sido mais rápido e atirado duas vezes. No entanto, no dia seguinte, em novo depoimento, ela disse que só viu um volume na cintura de Igor.
— No calor da emoção, devido às circunstâncias, eles podem ter afirmado uma coisa que não viu, mas logo em seguida, tá, essa questão, ela foi corrigida — alega o advogado de Carlos, André Rios.
A Polícia Militar do rio, em nota enviada a TV Globo, esclareceu que Carlos Alberto está aposentado desde dois mil e vinte e que não possui arma da corporação. O caso está em investigação na corregedoria. Já a Polícia Civil informou em nota que investiga a responsabilidade do PM e de Josilene pela comunicação do crime e pelas inconsistências na prestação dos depoimentos.
O Tiago está sem trabalhar desde que foi preso. Ele perdeu o celular no dia do tiro e precisou mandar a moto para o conserto. Enquanto isso, Igor perdeu um rim e passou por uma cirurgia para reparar o estômago e a musculatura das costas. Ele está em tratamento psiquiátrico para se recuperar do trauma.
— Hoje eu estou psicologicamente muito abalado. Um pouco melhor do que antes, porque agora estou à base de medicação, mas ontem e anteontem foram as piores crises que eu tive. Não queria ficar parado, não conseguia raciocinar. Não conseguia distinguir o que é bom pra mim. Fisicamente, graças a Deus, eu vejo que eu estou muito bem. Muito bem mesmo. Mas psicologicamente, acho que a reconstrução vai ser muito grande ainda. E muito árdua — detalha.
Além do trabalho como garçom, Igor é inspetor na faculdade onde estuda e participa de transmissões esportivas na internet. É nessa hora que ele junta a paixão pelo futebol com o sonho de se formar. Na última sexta-feira, o universitário foi contratado como correspondente do programa “Rádio Craque Neto”, integrando a equipe do ex-jogador Neto, atual apresentador do programa “Donos da Bola”, exibido diariamente na Band:
— Eu sinto que eu nasci pra ser jornalista. Eu vou conseguir. Eu sou muito alegre e muito feliz. Eu acho que agora o meu maior medo, assim, é é perder essa alegria.



Fonte ==> Folha SP e Globo

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