A vaga anunciada por um shopping de alto padrão em São Paulo para afastar pessoas em situação de rua da entrada do centro comercial é mais do que ofensiva, é reveladora. Sob o disfarce da “mediação de conflitos”, a função descrita busca, com todas as letras, “abordar pedintes e retirá-los do foco do cliente”. A frase soa como um erro de comunicação, mas é, na verdade, a mais pura tradução do que o mercado pensa das pessoas em situação de pobreza: um incômodo visual que precisa ser removido da paisagem.
Essa lógica tem nome: aporofobia. O horror à pobreza, quando transformado em política pública ou prática empresarial, ganha contornos de violência institucional. E é exatamente isso que está acontecendo. A cidade de São Paulo — e o Brasil como um todo — já não se constrange em tratar a miséria como um problema estético. O muro da Cracolândia, os jatos de água contra pessoas dormindo nas ruas, as grades em bancos de praça, os cortes em políticas de acolhimento. Tudo isso tem o mesmo objetivo, de limpar a cidade da presença dos indesejáveis.
Vaga pedia que assistente social afastasse moradores em situação de rua do ‘foco do cliente’. Foto: Reprodução
É nesse contexto que entra o anúncio da vaga. E mais do que uma distorção da função social do trabalho, ele representa um ataque direto à profissão de assistente social. A descrição do cargo exige formação na área, mas fere frontalmente o Código de Ética da categoria, que tem entre seus princípios a defesa intransigente dos direitos humanos e o compromisso com a transformação social. Nenhuma pessoa que entenda o papel da assistência social pode aceitar trabalhar como braço da higienização urbana.
Essa ousadia da segurança privada em lançar uma vaga como essa não surge do nada. Ela é fruto de um imaginário construído pelas práticas estatais, especialmente pelas polícias, que historicamente atuam na repressão aos corpos pobres e racializados. O Estado brasileiro tem dado sinais de que a função de “segurança” é, muitas vezes, sinônimo de contenção da existência. Não à toa, a repressão aos rolezinhos em 2013 e 2014 — quando jovens negros e periféricos ocuparam os shoppings em movimento cultural e político — foi tratada como caso de polícia.
O rolezinho escancarou que os shoppings não são apenas centros de compra. São templos do consumo onde a presença negra e periférica é tolerada apenas enquanto vendedora, estoquista, faxineira. Quando esses corpos reivindicam o direito de circular como consumidores ou simplesmente ocupar o espaço, são alvo de criminalização. É esse mesmo tensionamento que retorna agora. A cidade de São Paulo segue tratando a pobreza como problema de marketing. O shopping, como símbolo máximo dessa lógica, tenta converter o assistente social em filtro humano, selecionando quem pode ou não aparecer na foto. Como pergunta a psicóloga Lia Vainer Schucman: “Que tipo de vantagem uma pessoa em situação de rua branca pode ter em relação aos negros que dividem com ela um pedaço de calçada no centro de São Paulo?”. A resposta de Fernando, jovem loiro, de olhos azuis, entrevistado por ela, é direta: “Ah, ser branco é poder entrar no shopping para cagar”.
A fala é crua, mas escancara como a branquitude, mesmo na pobreza, ainda carrega consigo privilégios de circulação, pertencimento e acesso, inclusive no que há de mais básico: o direito ao banheiro. E é justamente essa seletividade racial que estrutura o olhar da vaga em questão. O segurança a ser contratado, obviamente, não está ali para barrar os Fernandos.
Não se trata de um caso isolado. Como mostrou o padre Júlio Lancellotti, a proposta tem relação direta com um projeto de cidade excludente, no qual os corpos pretos, migrantes e desviantes do padrão de consumo são removidos, ocultados, silenciados. Não há política de habitação, saúde mental ou renda mínima que resista quando a prioridade é proteger o olhar do cliente, e não a dignidade de quem vive nas ruas.
Não se trata apenas de remover pessoas da porta do shopping. Trata-se de disputar o que pode ou não existir na paisagem da cidade. Trata-se de reatualizar a lógica da senzala e da casa-grande em pleno século XXI, onde o acesso ao centro, simbólico e físico, continua vedado para quem não se encaixa no padrão hegemônico.
O termo “retirar do foco” não é neutro. Ele escancara que o problema não é a fome, o frio ou a solidão. O problema, para o shopping, é ver isso tudo enquanto consome. A lógica é simples: se o sofrimento causa desconforto, que se retire o sofrimento — ou melhor, quem sofre. A aporofobia se revela aí em sua forma mais cruel, a ideia de que algumas vidas atrapalham a estética da cidade e, por isso, devem ser apagadas.
Mas quem tem fome não desaparece com uma abordagem técnica. Quem precisa de afeto, de abrigo, de política pública, não será incluído com base em metas de engajamento e desempenho de vendas. A tentativa de converter profissionais da assistência social em agentes de contenção da miséria é não só ilegal, mas imoral.
A sociedade que naturaliza esse tipo de iniciativa é a mesma que aplaude muros, ignora violências e prefere a indiferença ao enfrentamento das desigualdades. É hora de dizer com todas as letras: gente não é lixo. Estar em situação de pobreza não pode ser crime estético.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Fonte ==> Casa Branca