Cinquenta anos depois do fato (aliás, 51), não param de sair em Lisboa livros sobre o movimento dos capitães e majores que, em 25 de abril de 1974, derrubou a ditadura que, por metade do século 20, tornou Portugal o país mais atrasado da Europa. É bom que o assunto continue tão vivo, para alertar contra retrocessos presentes e futuros. São livros de todos os ângulos e gêneros. Mesmo para mim, que então morava lá a trabalho, muitos contêm novidades.
Uma delas, a descrição da complexa urdidura militar que permitiu a queda do regime sem que a Pide, a brutal polícia política portuguesa, a percebesse e abortasse. O que podia ter facilmente acontecido com as consultas entre os jovens oficiais sobre se aceitavam aderir —nem todos concordaram, mas ficaram fiéis a seus camaradas e não os denunciaram. Para mim, no entanto, o mais surpreendente foi descobrir que, entre os objetivos a serem tomados na madrugada daquele dia —quartéis, postos policiais, palácios do governo, rádios, aeroportos— não estava a sede da Pide, na rua Antonio Maria Cardoso (por coincidência, defronte ao Consulado do Brasil).
A decisão, a cargo do estrategista do movimento, major Otelo Saraiva de Carvalho, foi a de que, por mais armada, a Pide, impotente diante do aparato do Exército, cairia sozinha. Tudo teria corrido à perfeição não fosse um fator que ele subestimou: a Pide, recordista europeia em prisões, espancamentos e mortes, era formada por homens grosseiros, estúpidos, irracionais. Enquanto todos os objetivos foram tomados sem resistência, sem um só tiro, a Pide abriu fogo contra a multidão que, na embriaguez da liberdade, cercara o seu covil. Quatro populares morreram —as únicas vítimas do 25 de abril.
E era previsível. Quem raciocina a poder de socos, choques elétricos e estupros não será capaz de analisar uma situação e, no caso, vê-la perdida. Reagirá com a única arma que conhece: a ferocidade.
A mesma que alimenta o ódio e as ameaças que hoje tomam as redes sociais em toda parte.
Fonte ==> Folha SP