A recente promulgação da Lei Complementar nº 214/2025 representa um divisor de águas no sistema tributário brasileiro. Fruto da Emenda Constitucional nº 132/2023, a norma inaugura o novo regime de tributação sobre o consumo, substituindo cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por três —IBS, CBS e o Imposto Seletivo.
Na prática, o Brasil adota um modelo inspirado no IVA europeu, com promessas de maior eficiência, simplificação e racionalidade fiscal. No entanto, o desenho ainda em fase de transição impõe desafios operacionais relevantes às empresas, que precisarão se adaptar a um sistema híbrido até pelo menos 2033, arcando com custos de conformidade, ajustes tecnológicos e inseguranças típicas de períodos de mudança estrutural.
Paralelamente a essa transformação na tributação sobre o consumo, o governo federal já avançou também na segunda fase da reforma tributária, com foco na renda. Em 18 de março de 2025, o Poder Executivo apresentou formalmente ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 1087/2025, que propõe mudanças significativas no Imposto de Renda, alterando a legislação do imposto para instituir a redução do quanto devido nas bases de cálculo mensal e anual e a tributação mínima para as pessoas físicas que auferem altas rendas. Entre outras medidas estão a ampliação da faixa de isenção do IRPF para R$ 5.000 mensais; a criação de uma alíquota de 10% sobre rendimentos acima de R$ 600 mil ao ano; e a reintrodução da tributação de dividendos, à alíquota de 10%.
Essas medidas, que tramitam em regime de urgência constitucional no Congresso Nacional, representam uma etapa complementar da reforma tributária, conforme planejamento anunciado pelo governo desde a aprovação da EC 132/2023. A Lei Complementar nº 214/2025 trata especificamente da tributação sobre o consumo, enquanto as mudanças no Imposto de Renda estão sendo tratadas no PL 1087/2025, seguindo o cronograma previsto para a implementação completa da reforma tributária.
O projeto de reforma do IR tem sido apresentado sob a bandeira da “justiça fiscal”, buscando uma redistribuição da carga tributária. Segundo dados do Ministério da Fazenda, o governo deixará de arrecadar R$ 25,84 bilhões em 2026 com a ampliação da faixa de isenção, valor que chegará a R$ 29,68 bilhões em 2028. Para compensar essa perda, o projeto prevê a cobrança do imposto mínimo sobre altas rendas e a tributação de dividendos, estimando uma arrecadação adicional de R$ 34,12 bilhões em 2026.
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A tributação de dividendos, um dos pontos mais debatidos da proposta, representa uma mudança significativa no sistema atual, onde esses rendimentos são isentos. Críticos argumentam que essa medida pode desestimular o empreendedorismo e penalizar pequenas e médias empresas no regime do lucro presumido. Por outro lado, defensores da medida apontam que a isenção atual contribui para que os 0,2% de brasileiros mais ricos sejam proporcionalmente menos tributados que o restante da população.
Para mitigar possíveis impactos negativos, o projeto prevê um mecanismo que impede que a tributação conjunta da pessoa jurídica e da pessoa física seja superior a 34%, evitando o que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chamou de “tributação excessiva” que poderia desencorajar investimentos no Brasil.
Do ponto de vista empresarial, o cenário que se desenha é de duplo desafio: de um lado, a necessidade de adaptação ao novo sistema de tributos sobre o consumo, com seus desafios técnicos e regulatórios; de outro, a necessidade de compreender e se preparar para as mudanças na tributação sobre a renda, caso o projeto seja aprovado pelo Congresso.
O discurso oficial sobre “reforma justa” precisa ser analisado à luz dos dados concretos: segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI, órgão vinculado ao Senado Federal, criada no ano de 2016, com o objetivo de aumentar a transparência das contas públicas do país), o projeto deve manter o equilíbrio orçamentário, com efeito neutro do ponto de vista do orçamento público. Isso sugere que não se trata primariamente de um aumento da carga tributária total, mas de uma redistribuição, aliviando contribuintes de menor renda e aumentando a tributação sobre os mais ricos.
A estratégia de implementar a reforma tributária em fases —primeiro o consumo, depois a renda— reflete a complexidade do sistema tributário brasileiro e a necessidade de construir consensos políticos em torno de mudanças estruturais. Cabe ao setor empresarial e à comunidade jurídica acompanhar atentamente a tramitação do PL 1087/2025, participando ativamente dos debates e contribuindo para que a modernização tributária promova, de fato, maior justiça fiscal sem comprometer a competitividade e o ambiente de negócios no país.
Fonte ==> Folha SP