Gilberto Gil anunciou nova data para apresentar em São Paulo o show de sua turnê Tempo Rei, a última que pretende fazer, ao menos em grandes dimensões. O espetáculo é um deslumbramento musical, visual e, porque não dizer, espiritual.
Renato Terra, colunista desta Folha, foi um dos primeiros a chamar a atenção para o fato de que presenciamos um acontecimento que precisaria ser definido por uma nova palavra. “O que acontece no palco não é apenas um show. É como se a música fosse vestida pelo cinema e, dessa fusão, brotasse uma terceira forma de arte.”
Talvez essa palavra já tenha sido cunhada por Richard Wagner (1813-1883), a “gesamtkunstwerk” ou “obra de arte total”, conceito estético que se refere à conjugação de diversas formas artísticas numa mesma obra. Wagner pensou essa ideia a partir da tragédia grega e da ópera, que pretendia renovar.
A grande ópera contemporânea de Gil reúne uma bem-sucedida junção de música, cinema, fotografia, gráfica, num trabalho admirável de direção artística de Rafael Dragaud, cenografia de Daniela Thomas e pesquisa de Julia Schnoor.
“A música em pessoa”, como já ouvi Caetano Veloso defini-lo, o compositor e cantor tropicalista faz um vasto passeio por sua obra em 30 hits –aos quais outros 30, se necessário, poderiam ser acrescentados.
Gil é um orixá do que já se chamou de Roma negra, a talentosa e fascinante Bahia, caldeirão de criação e elaboração de uma cultura afro-brasileira com marcante diversidade de raízes, que se abre para o sincretismo, a miscigenação e a modernidade.
Para falar com Gil não é preciso estar a sós, tampouco se achar medonho. É preciso encontrá-lo nessa complexidade de fusões, justaposições, conflitos e dialéticas, essa tentativa de síntese de uma gramática cultural e artística que é brasileira pelo sotaque, mas de língua internacional.
Na miríade de temas, referências e embates que sua obra trava nos planos musical, poético e político, ganham relevo no show questões ligadas ao universo místico e religioso, realçadas pelas indagações sobre o tempo, a finitude e a transcendência.
Gil se defronta desde os primeiros acordes de sua carreira com o universo católico, o Jesus que prometeu coisa melhor, mas não entrega aqui na terra o que os desvalidos esperam em sua ‘Procissão’ –grito terreno a questionar o viés conformista da religiosidade popular. Nos falou com frequência desse Deus contraditório que dá um santo a toda menina baiana, mas que também nos deu o primeiro índio abatido e o primeiro pelourinho.
Não deixa, por isso, de andar com fé, que não está apenas no céu, também está na mulher, na lâmina de um punhal, na luz e na escuridão. O Deus cristão está também em Cálice, a canção contra a ditadura composta com Chico Buarque na década de 1970.
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Como em certo amálgama brasileiro, as divindades de Gil não se concentram e subordinam a um núcleo monoteísta, embora o Pai esteja sempre ali; são uma congregação de entidades que baixam no altar ecumênico de sua celebração musical. De cultos de matriz africana a espiritualidades orientais e ocidentais, além da natureza –afinal nós também somos do mato, como o pato e o Leão.
Não é difícil falar com Gil, basta ter mente e corpo abertos ao bálsamo de sua deusa música.
Fonte ==> Folha SP