A Companhia do Latão, um dos grupos teatrais mais relevantes do cenário brasileiro contemporâneo, completa 28 anos com a apresentação do espetáculo “A Banda Épica na Noite das Gerais”. A peça, uma criação coletiva a partir de um argumento original do diretor Sérgio de Carvalho, combina a tradição do teatro épico brechtiano com a cultura popular brasileira, celebrando não apenas a trajetória da companhia, mas também uma forma de fazer teatro que une engajamento político, estética refinada e crítica social.
O espetáculo, em cartaz no Sesc 14 Bis até o próximo domingo (16), desafia as convenções do teatro tradicional, mergulhando em uma fragmentação dramatúrgica e uma quebra da linearidade do drama para construir uma narrativa épica e crítica sobre história e identidade brasileira. A direção de Sérgio Carvalho, reflete o compromisso do grupo com um teatro politizado e reflexivo, mas também exige do espectador uma disposição para se engajar com sua complexidade.
Como o próprio Carvalho diz, a peça acontece “como se fosse um documentário falhado em que a fala dos artistas não corresponde sempre às cenas mostradas, como se o país real sempre estivesse enfumaçado ou além, confundindo-se com uma visão de faroeste” e aqui está uma chave importante para entender a proposta da obra. A não correspondência entre fala e cena cria um efeito de estranhamento, reforçando a ideia de que o Brasil é um projeto sempre inacabado, uma nação cuja realidade parece escapar à compreensão clara.
A abordagem da Companhia, que mistura o épico, o documental e o alegórico, resulta em uma narrativa intrincada, onde passado e presente se confundem, questionando a noção de progresso e a permanência de estruturas coloniais e autoritárias. Com cenas curtas e aparentemente desconexas e diálogos que se sobrepõem, o elenco versátil e engajado, que conta com nomes como Helena Albergaria e Caio Horowicz, transita com habilidade entre os diversos personagens e registros, sustentando a densidade da proposta.
No entanto, a escolha pela não linearidade e pela fragmentação pode ser um obstáculo para parte do público. A sensação de “documentário falhado” mencionada por Carvalho, embora potente do ponto de vista crítico, pode gerar uma certa desconexão emocional, já que a obra prioriza a reflexão intelectual sobre a identificação imediata com os personagens ou a trama. Para quem está aberto a essa experiência, a peça oferece uma análise potente e necessária sobre o Brasil e suas contradições.
Três perguntas para …
… Helena Albergaria
A peça aborda temas como a ditadura militar, a resistência cultural e as violências históricas contra os povos originários. Como esses temas foram trabalhados durante o processo criativo?
O espetáculo procura colocar nosso sentimento e nossas questões sobre o Brasil atual e também sobre nós como trabalhadores da cultura. O Sérgio trouxe a ideia de uma banda de músicos cujo ônibus quebra no interior de Minas Gerais, perto do Rio Doce, num local onde existiu um reformatório indígena extremamente violento, que foi desativado no ano de 1972. A escolha do ano se liga também ao fato de ser um momento de aceleração do capitalismo no mundo, e de golpes de estado brutais na América Latina.
Na Companhia do Latão buscamos sempre uma atitude de curiosidade em relação ao trabalho. Então partimos para experimentação de cenas com esses nortes dados pelo Sérgio, começando pela banda de artistas urbanos e politizados — inspirados pelo lindo filme de [Martin] Scorsese, “Rolling Thunder Revue” (2019) — que se perdem no interior de Minas Gerais em 1972. Como nós mesmos, hoje, em 2025, as personagens querem sair desse lugar. Mas sua bagagem cultural parece ineficaz diante da realidade que encontram. O mundo pede deles mais flexibilidade e capacidade de adaptação do que eles podem ter.
Só que são tantas as camadas de violência que vivemos no nosso país, que as pessoas além de não terem condições materiais para enfrentá-las, não conseguem a calma necessária para entender como sair de situações que parecem eternas. Isso para nós corresponde a um desespero muito atual, e enquanto experimentávamos com dados históricos, notícias de jornais, sucessos de rádio e com nossas referências estéticas, fomos construindo nosso espetáculo.
A música é um elemento central em “A Banda Épica na Noite das Gerais”. Como foi o processo de integrar as canções à dramaturgia e à encenação?
A composição das músicas foi se dando ao longo de todo o processo, às vezes vindo antes das cenas e outras em decorrência delas. Com poucas regras: uma delas é que não podíamos trazer referências de canções pós-1972 e a outra é que tanto os músicos estariam atuando, como os atores desenvolveriam suas habilidades musicais. Outro fator que contribuiu dramaturgicamente com o colorido sonoro é que as canções variam de acordo com os ambientes sociais das personagens.
A Companhia do Latão sempre teve um forte compromisso com a crítica social. Como você acredita que o teatro pode contribuir para a conscientização e a mobilização política do público?
No texto “A Compra do Latão” de Brecht, o narrador diz: “eu me pergunto o que fazer para ser tão feliz quanto o possível, e sei que a minha felicidade depende de como os outros se comportam, por isso me interessa aprender a arte de agir sobre os demais”. Na minha opinião, e certamente pode haver outras, o mais legal no trabalho é mostrar uma atitude de alegria coletiva pela cena complexa, com várias camadas de acontecimentos que se dão entre muitos fatores.
Restituir um tipo de liberdade, física e intelectual em cena, com nossos corpos disponíveis para o encontro de hoje (como pede Stanislavski). Com nossas atitudes — e não com discursos — lembrar que a vida pode ser um tempo de possibilidades, que as situações, ainda que terríveis, são históricas, inacabadas e que somos parte delas.
Sesc 14 Bis – r. Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, região central. Qui. a sáb., 20h. Dom., 18h. Até 16/3. Duração: 130 minutos. A partir de R$ 21, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.
Fonte ==> Folha SP