O projeto que estabelece um teto para o endividamento da União — e que, na prática, pode resultar em moratória da dívida pública — foi retirado da pauta da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado desta semana. A assesssoria do senador Oriovisto Guimarães (PSDB-PR), relator da proposta, informou que deverão ser feitos “ajustes” e não há previsão votação.
O recuo do relator ocorre após uma onda de críticas do Banco Central, da equipe econômica e do mercado financeiro. Embora nem o BC nem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenham se manifestado publicamente, fontes ouvidas pela Gazeta do Povo confirmam o intenso ruído gerado nos bastidores.
Na prática, a proposta de autoria do senador Renan Calheiros (MDB-AL) regulamenta artigos previstos na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que vêm, há décadas, sendo postergados, exatamente porque abrem possibilidade de calote da dívida pública.
Um deles é da Constituição, que dá ao Senado a função de definir os “limites gerais para a dívida total da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Outro artigo da LRF estabelece que, em até 90 dias, o Presidente da República precisa enviar ao Senado “os números da dívida consolidada da União, dos Estados e dos Municípios”.
O texto de Calheiros estabeleceu duas travas para o endividamento federal: a dívida bruta não poderia superar 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nem ultrapassar 6,5 vezes a receita corrente líquida da União. O parecer do relator incluiu no limite de 80% do PIB apenas as dívidas da União, excetuando Estados e municípios, que têm limites próprios.
Pelo projeto, quando isso acontecer, a União ficaria impedida de emitir novos títulos públicos, restringindo de forma drástica sua capacidade de financiamento. Em síntese, a medida poderia paralisar a máquina pública — algo semelhante ao shut down que ocorre nos Estados Unidos quando não há acordo sobre o teto da dívida. E, em última instância, o calote dos títulos do Tesouro.
Basta observar os números para entender a preocupação que se instalou entre economistas. Hoje, a dívida bruta de todos os entes da federação já atinge 77,6% do PIB e deverá fechar o ano em 80% do PIB, segundo dados do Boletim Focus do BC.
Já dívida da União — que representa 74,1% do PIB — pode atingir os 80% do PIB em até três anos, segundo projeções de mercado, que apontam para uma dívida bruta total de 84,1% do PIB em 2026, 87,3% do PIB em 2027 e 89,4% do PIB em 2028.
Banco Central sai enfraquecido
As avaliações de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo traduzem a ambiguidade da proposta. O lado positivo é colocar na mesa a discussão da necessidade da responsabilidade fiscal.
Para o economista Armando Castelar, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), a proposta tem méritos de frear o crescimento dos gastos públicos. “O aumento de gastos é prejudicial porque o governo é o grande devedor, e a elevação da Selic encarece tanto o financiamento da dívida quanto o investimento privado”, afirmou.
A solução proposta, no entanto, é questionada. “O Parlamento tenta forçar o governo a adotar uma postura mais responsável”, diz a economista Juliana Inhasz, professora do Insper. “O problema é que, como está formulada, a regra não funciona e ainda adiciona novos riscos.”
Um dos riscos atinge o BC, que nos bastidores alertou que o projeto representaria um enfraquecimento institucional para a condução da política monetária.
Basicamente, o BC é o guardião dos títulos do governo. Por meio da compra e venda desses títulos públicos, consegue, no dia a dia, garantir liquidez à economia diante de entradas e saídas de recursos — como, por exemplo, fluxos de dólares — e controlar a inflação, mantendo a taxa Selic próxima da meta definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom).
Se a emissão de dívida ficar travada, ele perde instrumentos importantes, inclusive a realização das chamadas “operações compromissadas”, que são mecanismos utilizados para retirar o excesso de dinheiro em circulação na economia. A atuação do BC ficaria restrita a mecanismos mais lentos e menos eficazes, como depósitos compulsórios ou taxa de redesconto. “Isso reduz a capacidade prática do BC de agir contra a inflação”, explica Inhasz.
Para Manoel Pires, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), nesse sentido, a proposta gera mais problemas do que soluções. “A política monetária é feita a partir de compra e venda de títulos públicos”, diz. “Um limite de dívida pode criar constrangimento para o BC perseguir a meta de inflação. Para o mercado, estar próximo dessa situação sempre representa um risco, podendo elevar juros e gerar nervosismo.”
No mercado financeiro, a percepção é semelhante: a medida aumentaria a incerteza, prejudicando a credibilidade do país e elevando o risco sobre os papéis da União. Outro ponto sensível é o impacto sobre as operações cambiais. Atualmente, quando a autoridade monetária atua para reforçar as reservas internacionais, injeta reais na economia, que depois precisam ser esterilizados para não pressionar a taxa de juros. Com a imposição do teto da dívida, esse mecanismo ficaria limitado.
Rigidez do Orçamento aumenta risco de moratória da dívida pública
A maior preocupação, no entanto, diz respeito ao próprio funcionamento do orçamento: com a maior parte das despesas sendo obrigatórias, seria impossível reduzir gastos de uma hora para outra se o limite fosse atingido. Nesse cenário, o governo poderia não conseguir rolar a dívida nem pagar juros, alimentando o temor de moratória.
“É possível que o governo não consiga se manter dentro dessa regra”, avalia Armando Castelar, economista do Ibre. “Com isso, o risco de calote aumenta muito, os juros sobem ainda mais, e o mercado passa a operar em um ambiente de insegurança e incerteza. Mesmo que não haja uma moratória formal, a simples dúvida já seria suficiente para elevar a percepção de risco e afetar a estabilidade financeira.”
Há dúvidas técnicas e incertezas sobre os efeitos práticos do projeto, especialmente na aplicação do artigo 31 da LRF, que estabelece punições para o descumprimento do limite de endividamento. Pelo texto, o governo fica proibido de realizar novas operações de crédito, exceto aquelas destinadas ao pagamento de dívidas mobiliárias — ou seja, títulos públicos emitidos para rolar a dívida existente.
O problema é que não está claro se essa exceção inclui o pagamento de juros ou apenas do principal. Na prática, isso significa que, embora o governo ainda pudesse emitir títulos para honrar parte da dívida, haveria risco de paralisação parcial caso os pagamentos de juros ficassem comprometidos.
Proposta não mira raiz do problema
Para Pires, a regra cria um problema que hoje não temos. “Além da possibilidade de ‘default’, a proposta atua no sintoma e não na causa”, avalia. Ele lembra ainda que o modelo americano de teto da dívida mostra a fragilidade da regra. Nos EUA, sempre que se está perto do limite, o Congresso amplia esse limite. Esse tipo de instabilidade poderia se repetir aqui”, alertou.
Castelar, do Ibre, ressalta que a proposta age tarde demais: “O problema é atacar os gastos e ter uma regra fiscal sustentável. O ‘teto de gastos’ [que vigorou no governo Michel Temer] era mais eficiente porque atacava o problema na origem. A experiência entre 2016 e 2021 mostrou melhores resultados: juros mais baixos, custo de capital menor e maior previsibilidade para investidores”, afirma.
Já a regra de limitar a dívida só vai ser acionada quando a situação se deteriorou. “Isso cria incentivos para empurrar a crise para governos seguintes”, diz. “A intenção de limitar o endividamento é positiva, mas o caminho escolhido não é o mais eficiente. O melhor seria retomar uma âncora sobre o gasto público, que já provou funcionar.”
Fonte ==> Gazeta