A noticiada negociação entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal para melhorar a legislação que pune os crimes contra o Estado democrático de Direito, podendo levar à redução de penas de alguns dos invasores da praça dos Três Poderes, deve ser analisada em dois níveis.
Primeiro, o da adequação, em si, dessas conversas: devem juízes negociar politicamente o que quer que seja? Em seguida, deve-se avaliar se o resultado da negociação em questão promete vantagens que a compensem.
É preciso desde logo destacar o duplo papel do Supremo. De um lado, ele é um tribunal e, como tal, deve operar segundo parâmetros de qualquer foro jurisdicional: julgando de acordo com o devido processo legal, interpretando leis segundo cânones hermenêuticos e respeitando a integridade da jurisprudência.
De outro, a corte é também órgão de cúpula de um Poder de Estado, o Judiciário, e deve estar em harmonia com os demais. Sob esse prisma, sua dimensão política se destaca e a ideia de diálogo com o Legislativo soa natural.
A questão é zelar para que o seu papel jurisdicional não seja contaminado pelo outro. É para evitar essa contaminação que se destaca um órgão, a presidência, ficando o exercício da jurisdição para os demais (o plenário e as turmas). Mesmo quando vota no plenário, o presidente via de regra fala por último, de modo que quase sempre sua opinião é dada com a maioria vencedora já formada. Seu peso decisório é relativamente diminuído para que seu papel político possa ser plenamente exercido.
Assim, nada há de impróprio, em princípio, em o ministro Luís Roberto Barroso entreter diálogos com seus pares do Legislativo. E, pelas mesmas razões, os demais ministros deveriam manter-se longe dessas tratativas.
Ainda quanto à atuação política própria ao Supremo, importa também o pretexto pelo qual ela é exercida. Pois mesmo sendo cúpula de um Poder, o tribunal não é político da mesma forma que, digamos, um partido político o é.
O terreno próprio para essa atuação é o das matérias relativas ao Judiciário, mirando a sua eficiência e independência. A própria Constituição reserva ao STF a iniciativa de projetos de lei sobre a carreira da magistratura. Há pouco tempo, o ministro Luiz Fux presidiu a comissão que redigiu o novo Código de Processo Civil, cujo teor obviamente interessava ao Judiciário. Antes, o Supremo já se envolvera nos debates para reforma do Judiciário e criação do CNJ.
Em todos esses casos, houve diálogo com o Legislativo sem estranhamento algum. O envolvimento do tribunal na discussão de uma lei que pune atentados contra sua existência e independência não deve ser visto como aberrante, desde que ele não use seu poder jurisdicional para garimpar ganhos políticos mediante barganha ou coação.
O diálogo entre Supremo e Congresso deve nortear-se por fidelidade à Constituição e prudência prática. Algumas penas dos soldados rasos do 8 de janeiro ficaram altas pela opção legislativa de criar dois crimes distintos —tentativas de abolição violenta do Estado de Direito e de golpe de Estado— que, na prática, sempre arriscarão ser cumulados.
Para isso, a reforma legislativa é um remédio adequado, desde que seja mantido o rigor contra quem concebe e comanda um golpe. Se bem executada, essa empreitada poderá melhorar a lei e preservar condições jurídicas e políticas para a devida punição a quem tentou virar a mesa em 2022, inclusive pela vil instrumentalização de uma turba fanática que só não está esquecida porque ainda serve ao propósito de buscar impunidade para Jair Bolsonaro e demais lideranças golpistas —essa sim, a mais infame das ambições.
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Fonte ==> Folha SP