A história da filosofia também tem suas modas. Há autores que caem em desgraça enquanto vivos ou mesmo depois de mortos. O francês Bertrand de Jouvenel é um desses casos. Hoje, quase ninguém tem a mínima ideia de quem ele seja, uma pena.
Bertrand de Jouvenel (1903-1987) teve sua memória manchada pelas simpatias pelo fascismo. De ascendência judaica, o avô materno —sua mãe chamava-se Sarah— era judeu da família Boas e o pai era um aristocrata católico, daí a famosa partícula “de” no seu sobrenome. Entrevistou Hitler em 1936, foi de esquerda, liberal, enfim, um homem de carreira controversa.
Para você ter uma ideia, aos 16 anos tornou-se amante, num caso escandaloso, da sua madrasta, a famosa escritora Colette, que então tinha cerca de 50 anos. Ela, por sua vez, escreveu um livro inspirado, provavelmente, nesse affaire. Já adulto, teve um caso tórrido com a fotógrafa de guerra Martha Gellhorn. Basta?
Independente da sua trajetória acidentada, ele refletiu sobre a natureza do poder de forma bastante significativa. Jouvenel pensou o poder na fronteira entre a metafísica da substância do poder e sua “natureza” intrínseca. E como “funciona” essa substância natural do poder?
O poder não para de crescer se algo não o impedir, ou seja, uma outra forma de poder. Esse problema lhe parece conhecido?
Seu livro mais famoso sobre o tema é de 1945, “Du Pouvoir: Histoire Naturelle de sa Croissance” —”O Poder: História Natural do seu Crescimento”, com tradução no Brasil. Para Jouvenel, a história natural do poder revela sua tendência implacável à expansão de sua natureza —redundância proposital. Cada vez mais o poder quer mais poder. Insaciável.
Esse crescimento se dá de modo a aumentar a concentração de poder e centralização deste nas mãos de quem o exerce institucionalmente. Logo, qualquer instituição sem limites externos tenderá ao abuso e à expansão de suas funções de controle sobre o corpo social no qual está inserido.
Deste fato decorre que o poder jamais se limita, mesmo quando exerce esse poder em nome do bem comum. Logo, um “poder do bem” é tão intrinsecamente expansionista e de vocação autoritária quanto um “poder do mal”, devido à sua natureza voltada ao crescimento de si mesmo no tempo e no espaço.
Uma consequência inevitável dessa “lei de crescimento do poder”, mesmo quando movido por boas intenções —poderíamos dizer que o inferno está cheio de gente poderosa com boas intenções—, é que ele esmagará a liberdade e a autonomia dos indivíduos. Portanto, se depender de qualquer instituição não limitada exteriormente, a vocação do poder por si mesmo é destruir a liberdade dos cidadãos.
Assim sendo, mesmo o Estado de Direito senão portar dentro de si, ou seja, dentro das suas instituições, um mecanismo de freios e contrapesos efetivo, a vocação orgânica de qualquer uma das suas instituições será esmagar a liberdade dos indivíduos.
O Estado moderno é, historicamente, a forma de poder com maior vocação centralizadora e expansionista que já existiu no mundo, diferentemente do que sugere nossa vã filosofia do senso comum e também dos ideólogos das políticas do bem.
Se compararmos com outras formas ao longo da história, o caráter fragmentado do poder que existia —inclusive pela geografia sem estradas e sem formas efetivas e rápidas de controle e de comunicação— implicava em menor potencial de se tornar um poder expandido e dominador na sua área de influência.
Dito de outra forma: o Estado moderno é a forma de poder, até hoje, com maior potencial de esmagar seus cidadãos, se deixado à sua livre natureza de querer e realizar cada vez mais controle.
Seja em nome da justiça, do bem comum, da democracia, o poder, bem como as suas instituições, deve sempre ser posto sob controle de algum tipo.
Interessante lembrar que Jouvenel não conheceu a interação entre o poder do Estado moderno —e as formas ágeis de exercício desse poder—, por exemplo, via cliques jurídicos ou formas de rastreio minucioso da renda e dos gastos do cidadão.
A tendência inexorável do Estado moderno é se tornar —na confluência entre suas instituições e as modernas tecnologias da informação e da inteligência artificial— a forma mais avassaladora de poder que já se conheceu na face da Terra.
Nesse contexto, qualquer ideia de um poder centralizado e global —como propunha Albert Einstein em 1932 a fim de evitar as guerras na sua carta para Sigmund Freud sobre esse tema— é fadada a se tornar um leviatã absoluto, mesmo que seja para salvar o planeta de uma crise climática. Corromper-se é da natureza do poder.
Fonte ==> Folha SP