á pelo menos 15 anos, o missionário Paulo César dos Santos, o Paulinho, 40, abre as portas de sua casa para que ex-dependentes químicos em recuperação ou ex-moradores de rua.
Ele preside a Missão Cena, no centro de São Paulo, e é casado com Adriana, 39, pai de Lucas, 8, e Vitória, 1.
Atualmente, 14 ex-dependentes vivem em sua residência, localizada em Ermelino Matarazzo (zona leste). Todos os dias há uma rotina de devocional, laborterapia, atendimento psicológico, social, aconselhamento e momentos de estudo.
“As pessoas acham que é uma loucura ter minha esposa e dois filhos vivendo com pessoas que viveram na rua ou foram presas”, conta.
Antes de chegar à residência, todos passam pela triagem, que ocorre às terças-feiras na Cena.
A organização funciona no bairro Santa Ifigênia, oferece café da manhã, apoio para regularização de documentos, acesso a serviços públicos e contratação de advogados para resolver questões judiciais. Eles também têm uma creche, apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade, albergue e acolhimento para pessoas trans.
Os que aceitam tratamento para drogadição vão para a Fazenda Nova Aurora, em Juquitiba(SP), a 75 km da capital paulista, onde ficam, por pelo menos, nove meses.
Restaurados, muitos não têm família, ou não podem voltar para casa por causa do vínculo familiar quebrado. Paulinho e sua família os recebem para completar a reintegração.
“Seria contraditório tirar essas pessoas da situação que se encontram, enviar para reabilitação e depois abandoná-las. Com isso, elas poderiam voltar para a rua e para as drogas”, pontua.
Danilo, 27, viveu por dois anos na Cracolândia e agora comemora as mudanças. “Fiz exames, fiquei na fazenda e agora estou tirando documentos para voltar à minha vida social”, diz.
Rafael, 34, morou por sete anos nas ruas do centro. “Vivia no abismo, mas hoje tenho uma vida totalmente diferente. Vivia à margem, mas consegui enxergar meu valor”, conta o também morador da casa, que pretende cursar Enfermagem no próximo semestre.
As recentes mudanças na Cracolândia afetaram o número de atendimentos. Antes, eram cerca de 200. Agora, não chegam a 60, Os usuários de drogas, que antes ficavam aglomerados na rua dos Protestantes, se espalharam pela cidade, e há relatos de aumento de moradores de rua em cidades vizinhas.
Quem também serve na região é o pastor José Roberto Floriano, 51. Ele atua no projeto Da Pedra Para a Rocha, da Igreja Bola de Neve. Ex-traficante, Betão se converteu na cadeia, em 2008.
“Entendo que sou um privilegiado. Trago para eles o que deu certo para mim”, afirma o pastor que foi liberto dos vícios e teve a família restaurada.
Um convênio com a Prefeitura de São Paulo permite à ONG distribuir cerca de 400 refeições por dia. Às sextas, Betão e sua equipe distribuem sopa pelas ruas do centro. Quem deseja tratamento é enviado para o Recanto Pé Preto, em Ribeirão Pires (Grande ABC).
ORAÇÃO DE IRMÃ
‘Vivi 20 anos da minha vida aí”, aponta para a Cracolândia o motorista de aplicativo Alexandre Ricardo, 49.
Morou em hotéis na região, mas quando estava sem dinheiro, dormia na rua. Recolhia recicláveis durante o dia e gastava o que lucrava em crack. Conta que sua irmã orava por ele e recebeu a instrução de buscá-lo na Cracolândia. Ao lado do marido, distribuiu cartazes com sua foto pelas ruas e ele foi reconhecido por uma usuária.
Ligou, então, para a mãe e voltou para casa, em Mogi das Cruzes, região Metropolitana de São Paulo. Lá, recebeu a visita de alguns irmãos da Congregação Cristã no Brasil, e durante a oração, ele conta que Deus falou que mudaria sua vida.
“Nunca mais tive vontade de usar nada”, conta. Ele passou a frequentar a igreja e se batizou em maio de 2022.
Vendeu panos de prato e capinhas de celular, e como foi profetizado por um irmão, o emprego o procurou na porta da igreja.
Recebeu um convite para trabalhar em uma churrascaria, cuja dona, meses depois virou sua esposa. Tirou carta e hoje trabalha como motorista. Quando tem abertura, conta sua história para o passageiro.
“Já voltei na Cracolândia muitas vezes. Acho importante contar meu testemunho e mostrar que é possível sair dali e ter uma vida digna”, diz.
Fonte ==> Folha SP