A etapa municipal da 6ª Conferência Nacional das Cidades, realizada em 27 e 28 de junho em Blumenau (SC), evidenciou um dos dilemas mais urgentes e estruturalmente negligenciados do urbanismo brasileiro: a feminização da pobreza e sua íntima relação com a crise habitacional.
Em um cenário em que mais de 6,2 milhões de domicílios estão em déficit no Brasil — número que salta para 26,5 milhões quando consideramos as inadequações de infraestrutura (Fundação João Pinheiro, 2024) —, é necessário reconhecer que esse déficit tem gênero, raça e classe social. É urgente enfrentar o fato de que 40% da população brasileira vive sem acesso à arquitetura e ao urbanismo dignos e que mais de 4 milhões de domicílios sequer possuem banheiro. Esses números não são apenas índices de precariedade material, são expressões de um modelo urbano excludente, elitista e insensível às desigualdades de gênero e raça.
Esse modelo afeta diretamente a vida de milhões de mulheres brasileiras: grande parte dessas moradias em déficit é chefiada por mulheres. Entre 2016 e 2019, o percentual de lares liderados por mulheres em situação de déficit habitacional cresceu de 54,3% para 60%, com destaque para os subindicadores de habitação precária, coabitação forçada e aluguel excessivo — esse último atingindo 62,2% das mulheres em 2022, um salto significativo frente aos 54,3% anteriores. A maioria é de mãe solo, negras, com baixa escolaridade e sem rede de apoio. Entre 2012 e 2022, o número de mães solo aumentou 17,8%, totalizando 11,3 milhões de lares no País. Em 72,4% deles, essas mulheres vivem apenas com seus filhos, muitas vezes em condições de extrema precariedade. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2022, 90% das novas mães solo na última década são mulheres negras.
A questão da feminização da pobreza se afirma uma vez que essas mulheres trabalhadoras, vítimas de desigualdades históricas e violências persistentes, não apenas arcam com os custos da sobrevivência, como também são sistematicamente excluídas das políticas públicas de habitação e reféns de um ciclo perverso de sobrevivência. São mulheres que recebem salários 23% menores do que os homens, enfrentam jornadas duplas (trabalho formal + cuidado não remunerado) e destinam até 30% da renda ao aluguel, sem acesso a benefícios efetivos. O resultado? Um teto improvável. Um estudo realizado pelo Instituto Patrícia Galvão mostra que, com os valores de salário das mulheres negras (2.745,76 reais), cesta básica (714,65) e aluguel médio, o que lhes resta ao final do mês são apenas 31,62 reais — o que leva à estimativa de 184 anos para comprar uma casa de 69.828,57 reais.
Há ainda uma face mais cruel dessa exclusão: a ligação entre violência doméstica e ausência de moradia segura. Uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre agressão, e muitas são obrigadas a deixar seus lares sem ter para onde ir, entrando em situações precárias de coabitação ou aluguel abusivo. A realidade de Blumenau reflete bem esse quadro: mais de 1.300 medidas protetivas foram emitidas somente em 2024, uma média de três por dia. Essa estatística não é apenas um dado de segurança pública, mas uma denúncia sobre a ausência de uma política habitacional que proteja a mulher em situação de violência. Muitas não têm para onde ir ao deixar um parceiro agressor, o que transforma o lar — quando existe — em armadilha.
Frente a esse cenário de múltiplas vulnerabilidades, a conferência realizada no mês passado nos colocou a pensar sobre a Política Nacional de Desenvolvimento em uma perspectiva de justiça social e inclusão, revendo caminhos. De acordo com a Constituição Federal, a moradia está prevista no art. 6º como direito fundamental, mas a sua efetivação continua distante da prática cotidiana da maioria das brasileiras pobres. Neste sentido, pouco se fez além de financiar o acesso à moradia. Para essas mulheres, de nada adianta priorizar o registro do imóvel em seus nomes se não se tem continuidade de investimento na política pública.
Programas como o Minha Casa Minha Vida tiveram papel importante na titularidade feminina, mas carecem de continuidade e foco na emancipação econômica e territorial. Para as mulheres, a busca pela eficácia das políticas públicas de moradia significa uma linha tênue entre proteção e abandono, entre reconstruir a vida ou perpetuar ciclos de violência e insegurança.
Nessa perspectiva, a Conferência de Blumenau levantou apontamentos, como a criação de Zonas Especiais de Habitação de Interesse Social (ZEIS), o uso de imóveis ociosos no centro urbano e a implementação da lei da assistência técnica gratuita para construção e reforma em áreas de vulnerabilidade, além da garantia do “Despejo Zero”, que visa a permanência segura de famílias em ocupações urbanas, evitando remoções forçadas e desconectadas da realidade local.
Diante da gestão ineficiente que contribui para a ampliação da exclusão socioespacial de Blumenau e a fragmentação das políticas setoriais vinculadas à moradia, a conferência indicou a criação de uma secretaria urbana intersetorial. Trata-se de pensar o território não apenas como espaço físico, mas como rede de cuidados, conectadas às demandas do cotidiano e à ecologia urbana, em que as políticas públicas dialogam entre si — saúde, segurança ambiental, segurança, mobilidade e, sobretudo, habitação. Essas propostas apontam para a necessidade de reconhecer a moradia como um direito social.
No caso específico de Blumenau, essa realidade se expressa de forma concreta: a cidade tem hoje 71 áreas de assentamentos irregulares indicadas na revisão do Plano Habitacional de Interesse Social, realizado em 2025. Um crescimento alarmante em relação às 55 registradas em 2010. O avanço da informalidade urbana não é fruto de escolha individual, mas da omissão histórica do poder público em garantir o acesso ao solo urbano de forma justa, regularizada e segura.
A 6ª Conferência Nacional das Cidades nos provoca a visibilizar a condição dessas mulheres e de seus filhos que vivem nessa condição para ver priorizadas e transformadas essas realidades, a fim de contribuir com uma política urbana verdadeiramente inclusiva, justa e democrática, com prioridade orçamentária para habitação feminina; programas integrados com assistência social e renda; ZEIS qualificadas; defesa das moradias em contexto de violência; plena participação e escuta ativa das mulheres que vivem na linha de frente da sobrevivência urbana.
Uma coisa é certa: a resposta a essa realidade não virá apenas com discursos e encontros bem intencionados. É preciso orçamento, vontade política e, acima de tudo, urgência! Reunidos em conferência, demos um passo para rever e apontar novos caminhos, com o desafio real de acessar a realidade do nosso Brasil profundo, transformá-lo e não deixar ninguém para trás.
Fonte ==> Casa Branca