28 de junho de 2025

O suplício de ser estrela – 28/06/2025 – Ruy Castro

Cena do filme

Em 1948, um filme comoveu o mundo: “Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sica. Era a explosão do neorrealismo italiano, depois do sucesso de “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rosselini, dois anos antes. O pós-guerra na Europa devastada produzia um cinema áspero, cru, que se propunha a mostrar a vida como ela era, sem o esmalte de Hollywood. O filme conta a história de um biscateiro que arranja emprego como colador de cartazes, vê sua bicicleta —seu meio de transporte— ser roubada e, com o filho Bruno, sai por Roma à procura dela.

Enzo Staiola, o garoto do filme, tinha 8 anos e nenhuma experiência. Foi escolhido porque De Sica, ao passar por ele na rua, achou-o perfeito para o papel. Sua família, empobrecida, levou bom dinheiro e não hesitou em consentir. Enzo pediu licença na escola e, com seus olhos grandes e expressivos, provou-se uma revelação como o menino triste que acompanha a peregrinação de seu pai. Este, numa das cenas mais tocantes, descontrola-se e o esbofeteia, mas o personagem se segura. “Ladrões de Bicicletas” já nasceu um dos maiores filmes do cinema e os críticos previram um grande futuro para Enzo quando crescesse.

Só que Enzo não cumpriu a expectativa. Fez papéis menores até os 15 anos e, assim que pôde, saiu de cena. Com sua morte no dia 4 último, em Roma, aos 85 anos, soubemos por quê.

Ele detestou fazer o filme. Nas folgas, não podia jogar pelada com os amigos, pelo risco de se machucar. A espera entre uma tomada e outra era interminável; a repetição de cenas, um suplício. E De Sica dirigia-o com rispidez, gritava com ele, destratava-o, e a alegação de que fazia isto para extrair dele uma atuação convincente nunca o satisfez. Assim que pôde abandonou o cinema e, um dia, encontrou sua vocação: funcionário concursado de um cartório de registro de imóveis.

Donde, ao rever agora o garoto sofrido de “Ladrões de Bicicletas”, sei que não era faz de conta. Enzo sofria de verdade em cada minuto do trabalho. Isso, sim, é que era neorrealismo.



Fonte ==> Folha SP

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